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Resenha literária do livro "O Segredo da Boneca Russa", pela poeta e professora Hermínia Lima

  • Editora 7
  • 12 de jul. de 2019
  • 5 min de leitura

Acompanhando o desvendar do mistério em torno de um roubo de um relógio, pelas páginas de “O Segredo da Boneca Russa”, viajamos em rota que se inicia na capital cearense, Fortaleza. Porém, o enredo nos revela “duas” Fortalezas: a Fortaleza contemporânea, mais precisamente, a Fortaleza do ano de 2014, que se presentifica na narrativa por meio de uma conversa, numa delegacia de polícia e, paralela a esta, uma Fortaleza mais antiga, das décadas de 60, 70 e 80. Essa “segunda” Fortaleza nos é revelada por uma narradora-protagonista, escritora biógrafa franco-brasileira, Joëlle, que tem acesso aos fatos por meio de conversas com um “tio”, com outros personagens e também por meio de pesquisas em acervos históricos. Da capital cearense, o roteiro de viagem nos leva a Pedra Verde, cidade no interior do Estado, em muitas idas e vindas, no presente e no passado.


A viagem se estende passando pelo Rio de Janeiro, até chegarmos à capital francesa, Paris, local onde a protagonista, Joëlle, viveu até a adolescência e para onde volta sempre e constantemente no tempo presente. Nesses quatro espaços, Fortaleza, Pedra Verde, Rio de Janeiro e Paris, desenvolve-se a trama que, em tempo real, tem duração de mais ou menos, um mês; mas, em tempo psicológico, se estende por décadas, pelos inúmeros retornos, por meio de flashback, a um passado que nos leva à época da ditadura Vargas, e nos traz de volta à contemporaneidade.

Além das cenas ambientadas em espaços geográficos do Brasil, a narradora nos faz passear pelas ruas de Paris, destacando lugares e detalhes interessantes e relevantes da vida social dos franceses. Nesse passeio, além de demonstrar grande intimidade com locais especiais da vida cultural da Cidade Luz, a mesma narradora faz pequenas análises de curiosidades próprias da capital francesa que são bem surpreendentes e que muito enriquecem a narrativa, como é o caso da “aula de arquitetura” que ela nos dá, ao tecer comentários sobre as chambres de bonne, habitações coletivas que foram adaptadas dos antigos palacetes das famílias ricas parisienses, a “empavonada e emergente burguesia – os nouveaux-riches”, do século XIX.


Neste cenário, percebe-se que o que move o fio narrativo é a trama de mistério, portanto, “O Segredo da Boneca Russa” pode ser classificado como um romance policial. Contudo, a trama ficcional da obra se amalgama de tal forma aos fatos reais, que podemos classificá-la também como romance histórico e político. Nos capítulos de “O Segredo da Boneca Russa”, deparamo-nos com uma verdadeira e longa aula de história do Brasil ministrada de modo envolvente e surpreendente, porque não literal, mas literário. Não apenas fazendo resgate e apresentação dos fatos; mas, acima de tudo, ofertando ao leitor uma visão crítica detalhada que preenche lacunas com informações valorosas e reveladoras de uma versão “não oficial” dos fatos histórico-político-sociais.

Ao analisar “O Segredo da Boneca Russa”, eu escreveria um longo capítulo somente sobre os personagens que povoam a obra. Difícil resumir aqui todos os tipos humanos representados nas páginas deste livro. Chamam-nos a atenção, em especial, os personagens anônimos que a narradora transforma em protagonistas da trama e, por meio deles, logo nas primeiras páginas, a obra ganha um ar de denúncia que nos faz lembrar os romancistas realistas do século XIX, ou os modernistas das gerações de 30 e 45. O melhor exemplo que podemos citar é o caso das negras empregadas domésticas que protagonizam o enredo do romance e, por meio de quem, é puxado o fio condutor da narrativa. Dinamizando a cena, em contrapartida, temos outros tipos humanos, como: o militar perverso e pervertido, a matriarca malvada, a jornalista investigativa, os religiosos hipócritas e muitos outros tipos. Esses indivíduos fazem parte e circulam em torno de uma família clivada entre duas alas politicamente definidas: uma ala progressista, mais afeita aos princípios socialistas e humanistas, versus uma ala conservadora, conduzida por orientação política nazifascista.


Uma das marcas temáticas que mais nos saltam aos olhos é o tom de crítica social que permeia toda a obra. Apenas para ilustrar, alguns temas que se destacam na trama, citamos aqui: crítica ao mar de lama que marcou a antiga política da UDN, contra a corrupção policial, contra a divisão física e psicológica entre a “casa grande” e a “senzala”, contra os abusos doutrinadores do clero, contra atitudes ditatoriais dos militares. Também contra o voto de cabresto, contra atitudes racistas dos governos, contra o capitalismo americano, contra o comprometimento de parlamentares com interesses antinacionais, contra a decadência do ensino público, contra a união espúria entre lideranças da ditadura e lideranças religiosas, contra as atitudes venais da imprensa, chegando até às críticas mais atuais como às fake news nas redes sociais, além de tantas outras. Porém, cabe aqui destacar e dar ênfase a dois conteúdos críticos que se sobressaem na narrativa e chegam a nos causar asco: as injustiças e maus tratos com empregados domésticos somados aos abusos sexuais contra menores de idade. Essas são duas temáticas que estão ligadas ao cerne da trama de mistério.


Outro traço estilístico da narrativa de Celma Prata é a erudição do discurso, isso se confirma pelas citações de grandes nomes da literatura, da filosofia, da música e de outras artes que figuram e dialogam com a narradora e com o leitor nas páginas do romance. São inúmeras as ocorrências intertextuais, entre as quais destacamos os muitos fragmentos da obra Le Mur, de Sartre que são citados pela protagonista.


A mais de tudo que já foi mencionado, não poderíamos deixar de destacar um ingrediente imprescindível a um bom romance: um caso de amor. Isso também não falta na narrativa de Celma. Temos uma envolvente história de amor que nos enternece e nos põe em estado de curiosidade até às últimas páginas do livro. Não vou detalhar aqui, nem mesmo falar sobre ela para não tirar de vocês o prazer da leitura.



Hermínia Lima, poeta e professora da Unifor, Mestra em Literatura e Doutora em Linguística

Quero deixar aqui os meus aplausos à autora pela ousadia e coragem de escrever uma narrativa de ficção que toca em temas tão polêmicos e necessários, principalmente no momento sócio-político em que estamos vivendo no País. Por isso, afirmo que, além de político-histórico e policial, esse é um romance de resistência. Uma obra que nos conta uma “história para ninar gente grande”, como disse o sambista no título do samba-enredo da Mangueira, neste carnaval de 2019. Permitam-me esta intertextualidade lítero-musical com o samba da Mangueira, “história para ninar gente grande”, porque quero, por meio dela, apontar que Celma Prata, tira a “poeira dos porões da História”, como nos diz a letra do samba, Celma Prata nos conta “a história que a história não conta” como brada o samba da Mangueira, Celma Prata nos revela “o avesso do mesmo lugar”, Celma Prata não escreve em versos, mas, como no diz o sambista da Escola, metaforicamente, Celma resgata o “verso que o livro apagou”. Celma Prata, com suas personagens negras, anônimas e domésticas, nos mostra “sangue retinto pisado atrás de heróis emoldurados”, Celma Prata traz à tona e imortaliza “o Brasil que não está no retrato”. E assim, ela se inscreve também na tradição do romance jornalístico contemporâneo, gravando seu nome na linhagem dos escritores que, mesclando história e literatura, usam a palavra como arma em defesa de heróis anônimos.

 
 
 

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