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“O Segredo da Boneca Russa” e a revelação da romancista Celma Prata

  • Foto do escritor: Angela Gutiérrez
    Angela Gutiérrez
  • 7 de mar. de 2019
  • 5 min de leitura

Apresentação da acadêmica Angela Gutiérrez do romance «O Segredo da Boneca Russa», de Celma Prata, em 27 novembro de 2018, no Ideal Clube, em Fortaleza (CE), Brasil. Angela Gutiérrez é a atual Presidente da Academia Cearense de Letras.

Muitas vezes ouvi do querido mestre Moreira Campos uma frase que, um dia, em 1993, nosso grande contista repetiria, por escrito, na coluna “Porta de Academia”, que mantinha no jornal O Povo: “... o que importa em literatura, no sentido de arte, é saber se esta agrada, prende.” “O Segredo da Boneca Russa”, de Celma Prata, que hoje tenho o prazer de apresentar, preenche os dois requisitos que o grande contista considerava essenciais em uma narrativa final, pois sua leitura agrada e prende.


Esse romance nos atrai desde sua intrigante capa, concebida pelo sempre inventivo escritor e artista Geraldo Jesuino, que contrasta o tom escuro de base com o vermelho das letras do nome da autora, cor que se espraia como sangue derramado a descer da imagem de uma matrioska que, por sua vez, remete ao título do livro. No bem cuidado paratexto da publicação, ressalto, ainda, a fotografia da autora, em elegante postura, à moda dos retratos de Da Vinci, vestida em negro, em conformidade com a dramaticidade da narrativa que assina, quebrada levemente a severidade pelo sorriso iluminado da escritora. Rosto e mãos compondo o chiaro a sobressair ao lado do oscuro dos cabelos e do traje. (crédito da foto: Tati Aquino). Se me detive em alguns elementos que envolvem a obra “O Segredo da Boneca Russa”, não escondo a intenção de ir mostrando como a atração primeira pelo objeto-livro – aquela que nos faz parar diante de uma bela capa nas prateleiras de uma livraria –, nesse caso, para além da beleza estética da capa, essa sugere também um enredo de sangue e mistério para o livro. Ao penetrarmos no texto, o encantamento da trama e do discurso vai construindo o segundo requisito mencionado pelo Mestre Moreira Campos, ou seja, prende o leitor, a leitora em suas teias literárias.


O modo de brincar com uma boneca matrioska, desenroscando-a, retirando a metade de cima consecutivamente, de modo que bonecas cada vez menores vão saindo, como por magia, uma de dentro da outra, seria um bom modelo para explicar a estrutura do primeiro romance de Celma Prata. Na trama ficcional, a personagem-narradora, Joëlle Dousseau, nascida na França, de mãe brasileira, é historiadora, especializada em biografias de famosos personagens autoritários, que impuseram regimes ditatoriais, injustos e cruéis, em seus países, como Hitler, Pinochet, Mao Tsé Tung, entre outros. Pelo tema que elegeu para seus livros biográficos, Joëlle ficara conhecida nos meios culturais como “a caçadora de déspotas”. Ao prometer à mãe, em seu leito de morte, que desvendaria um crime que acontecera na casa da avó materna, reassume o papel detetivesco de suas biografias para colher dados que possam desvendar as circunstâncias e a autoria desse crime acontecido no Brasil dos anos 60. Após concluir essa busca para reconstrução do passado que traria luz sobre o crime, Joëlle, que se comprometera com sua agente literária a escrever uma narrativa dos acontecimentos históricos da ditadura de 1964-1985, consegue convencê-la de que seria melhor escrever uma história romanceada do período e, assim, constrói um livro sobre o crime, apresentando as personagens sob nomes fictícios e em versão romanceada, na obra “A Boneca Russa”, ficticiamente publicada em 2014. Essa é a primeira boneca da metafórica matrioska. Posteriormente, a partir desse texto, a personagem-autora resolve reescrever a obra: o resultado será o livro que leremos, “O Segredo da Boneca Russa”, ou seja, a segunda boneca da metafórica matrioska, em que Joëlle muda o gênero de ficção para documentário, ao apresentar não mais o crime romanceado, mas o crime como fato real e ao usar os nomes verdadeiros das pessoas envolvidas, como sua mãe, Clara. Das duas bonecas, já apresentadas, vão saindo outras surpreendentes bonecas, narrativas menores da trama contadas por diferentes narradores, vozes e memórias do crime acontecido há mais de cinquenta anos, com relação ao tempo em que é narrado no segundo livro, publicado em 2018.


Paralelamente à busca da autoria do crime e dos acontecimentos que o motivaram, a personagem narradora usa seus conhecimentos de História, assim como textos de emissões radiofônicas e de jornais, jingles da campanha de Lula – “lulalá, brilha uma estrela” –, canções de Chico Buarque e de Belchior, conversas da família, para contextualizar os fatos históricos e culturais do país e caracterizar as personagens.


Do mesmo modo, apela à Filosofia, especialmente aos alemães Schopenhauer, Nietzche, Marx, para comentar as leituras do jovem Norberto, considerado subversivo, e à Literatura, em especial aos franceses Simone de Beauvoir e Paul Sartre – o livro “Le Mur’, de Sartre, marca momento relevante na vida da narradora, seu direito de ler literatura de adultos –, e, ainda, relembra suas próprias memórias do tempo em que viveu em Paris, para explicar a si mesma seu estranhamento diante de atitudes e preconceitos de classes abastadas de brasileiros.


Além da narrativa de Joëlle, outro fio de Ariadne que conduz o enredo do livro são os trechos de diálogo da narradora com o delegado a quem denunciou o crime, estrategicamente situados no início de cada capítulo do romance.


Dentro do jogo de faz-de-conta do enredo, em que a autora do livro não é Celma Prata, mas Joëlle, a personagem-narradora, ou seja, a principal voz da trama, vai reunindo os dados fornecidos por outras vozes até construir um grande coro, em que cada voz ganhará harmonia no todo.


Apresentado, em sua ficha catalográfica, em primeiro lugar, como “Ficção policial e de mistério”, o livro “O Segredo da Boneca Russa” exige de quem o apresenta ou o analisa alguns cuidados especiais, como o de não revelar dados que quebrem o suspense e as surpresas de revelações finais. Advirto, porém, que, se esse romance é categorizado como policial, é preciso que se esclareça que um romance por ser policial não se esgota fatalmente no desvelamento de seus dados escondidos ou na conclusão de seu enredo. O romance que vocês irão ler, ao mesmo tempo que mantém características herdadas do gênero policial, como o ritmo de atenção intensa, quase de estresse, no desvendamento do crime, é uma narrativa que conduz os leitores à reflexão sobre questões nacionais, como a profunda injustiça social e preconceitos ainda presentes no Brasil, e transnacionais, como concepções de vida no velho e no novo mundo, semelhanças e diferenças entre a primavera de 1968 na Europa e nos países da periferia do mundo, especialmente na América Latina, em grande parte, nos anos sessenta, setenta e oitenta, sob ditadura militar e, ainda, questões que interessam ao ser humano de qualquer latitude e longitude, do hemisfério norte e do hemisfério sul, como amor e ódio, democracia e ditadura, direito e injustiça.


“O Segredo da Boneca Russa” não parece livro de estreia no gênero romance, ao contrário, é obra madura, enriquecida pelo domínio da escrita e de técnicas narrativas contemporâneas, como o recurso a textos fragmentados, à não linearidade do tempo, que aparece em ziguezague, à mistura harmoniosa de diferentes linguagens para diferentes narradores, à concepção do narrador não onisciente, que constrói seu conhecimento pela escuta atenta e analítica da fala de outros narradores, ao uso de materiais linguísticos não-literários, como os jornalísticos, ou à intertextualidade com outros gêneros literários, poesia, letras de canções, correspondências, e muito mais.


Romance longo, de quase 400 páginas, “O Segredo da Boneca Russa” consegue manter o interesse de leitura da primeira à última página e revela uma nova romancista em nosso Ceará, que tem na obra de Rachel de Queiroz e na de Ana Miranda os exemplos mais conhecidos e respeitados no gênero.


Honrada em ter sido escolhida por Celma Prata para ser sua madrinha nesse batismo literário, auguro-lhe um futuro de pleno êxito na criação e publicação de seus próximos romances. Brilha uma estrela na literatura cearense!

 
 
 

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